Jornal do Fomento 101 – Edição de 11 de julho de 2012.
DECLARATÓRIA – Duplicata – Faturização – Cessão de crédito – Empresa de factoríng – Notificação do devedor – Inocorrência – Necessidade – Inteligência do artigo 290 do Código Civil – Pagamento ao primitivo credor – Validade – Dano moral – Pessoa jurídica – Admissibilidade – Débito quitado – Protesto indevido – Dano moral caracterizado – Indenização devida – Recurso da autora parcialmente provido e recurso da corre improvido
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação n° 9140254-55.2009.8.26.0000, da Comarca de São Paulo, em que são apelantes NESTLE BRASIL LTDA e COBRAVEL FACTORING FOMENTO MERCANTIL S/A, são apelados OS MESMOS e ARTICLAND COMERCIO E REFRIGERAÇÃO LTDA ((SOMENTE APELADO)).
ACORDAM, em 16a Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: POR VOTAÇÃO UNÂNIME DERAM PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO DA AUTORA E NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO DA CO-RE, de conformidade com o voto do (a) Relator(a), que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Desembargadores SIMÕES DE VERGUEIRO (Presidente sem voto), COUTINHO DE ARRUDA E JOVINO DE SYLOS.
São Paulo, 26 de junho de 2012.
CÂNDIDO ALEM
RELATOR
VOTO N°: 24240
APEL.N0: 9140254-55.2009
COMARCA: SÃO PAULO
APTES. : NESTLÉ BRASIL LTDA. e COBRAVEL FACTORING FOMENTO MERCANTIL S/A
APDOS. : OS MESMOS e ARTICLAND COMÉRCIO E REFRIGERAÇÃO LTDA.
*DECLARATÓRIA – Duplicata – Faturização – Cessão de crédito – Empresa de factoríng – Notificação do devedor – Inocorrência – Necessidade – Inteligência do artigo 290 do Código Civil – Pagamento ao primitivo credor – Validade – Dano moral – Pessoa jurídica – Admissibilidade – Débito quitado – Protesto indevido – Dano moral caracterizado – Indenização devida – Recurso da autora parcialmente provido e recurso da corre improvido.*
Cuidam-se de recursos de apelação de r. sentença de fls. 207/209, cujo relatório se adota, que julgou procedente em parte ação declaratória de inexistência de débito cumulada com pedido de cancelamento definitivo de protesto e indenização por danos morais e ato ilícito, para declarar inexigível a obrigação da autora representada pelo título nomeado na inicial, reconhecendo o pagamento efetivado. Ainda, foram os réus condenados ao pagamento das custas processuais e de honorários advocatícios, arbitrados em 10% do valor atribuído à causa, devendo responder cada qual, pela metade do valor final de sucumbência.
Recorre a autora, aduzindo, em suma, que pessoa jurídica pode ser sujeito de dano moral in re ipsa, nos termos da Súmula 227, do Colendo STJ e que, com o protesto indevido de duplicata já quitada, foi atingida em sua honra objetiva por abalo de crédito no mercado. Requer, assim, o provimento do pedido de indenização a título de danos morais e, ainda, a majoração do percentual arbitrado como verba honorária a 20% do valor total da condenação.
Recorre, também, a ré Cobravel Factoring Fomento Mercantil S/A alegando, em síntese: que a r. sentença julgou contrariamente ao entendimento anteriormente expresso pelo nobre magistrado, quando da análise do pedido de concessão de tutela antecipada, pois, nesta ocasião, entendeu que não havia prova inequívoca do quanto alegado, nem verossimilhança na argumentação discorrida e a autora não produziu quaisquer outras provas além das que instruíram a exordial e que tal entendimento fez coisa julgada; que o endosso translativo importa no aparecimento de obrigação cambial independente e autônoma da principal, importando em inoponibilidade das exceções pessoais ao terceiro adquirente de boa-fé; que a autora não nega a existência de relação subjacente, limitando-se a alegar o pagamento, todavia, sem comprovação; que a prova da quitação só se daria com a devolução do título ou por termo de quitação com a assinatura do credor ou do seu representante, nos termos do que determina o artigo 320, do Código Civil, não se podendo admitir o depósito bancário em conta corrente como comprovante de pagamento; que tomou todas as precauções ao adquirir o título em questão, exigindo a comprovação de legitimidade da dívida e a prova de entrega do serviço; que, concluída a transação enviou boleto bancário à autora, que, entretanto, quedou-se inerte; que, na pior das hipóteses, o recebimento do aviso de protesto não negado pela apelada pode ser tido como aviso de transferência do título e que, mantida a r. sentença, não poderá prevalecer a condenação ao pagamento de verba honorária fixada sobre o valor da causa, pois este incluía a reinvindicaçâo por danos morais não acolhida.
Apenas a autora apresentou contrarrazões, pugnando, em síntese, pelo improvimento ao recurso da ré.
Recurso processado.
É o relatório.
Ao que se extrai dos autos, a autora ajuizou a presente ação, visando declarar a inexistência do débito representado na duplicata n.° 171/2000, emitida em 20.03.2000, com vencimento em 20.04.2000, no valor de R$ 2.900,00, indicada a protesto em 08.05.2000, tendo como favorecida a corre Cobravel Factoring Fomento Mercantil S/A, em razão da quitação da dívida em questão, na data de 24.04.2000, perante a credora originária Articland Comércio e Refrigeração Ltda., por meio de depósito bancário em conta corrente desta. Pleiteou a autora, ainda, o cancelamento do protesto efetivado e a reparação dos danos morais advindos do protesto indevido do título em comento.
A corre Articland foi citada por edital e apresentou a sua defesa por curador especial.
Já a corre Cobravel Factoring Fomento Mercantil S/A, ora apelante, apresentou defesa e sustenta que recebeu o título em questão através de contrato de fomento mercantil celebrado entre as corres e que o protesto foi legítimo, porque a apelada não apresentou prova da regular quitação, sendo, portanto, devido o valor nele representado.
O inconformismo da corre Cobravel Factoring Fomento Mercantil S/A não procede.
Inicialmente, importante esclarecer que houve entre a apelante, empresa de factoring, e a corre Articland Comércio e Refrigeração Ltda. verdadeira transferência da titularidade da duplicata indicada a protesto, porque tal é da essência da operação de factoring.
A própria apelante esclarece que recebeu o título através de operação de factoring, recebendo os direitos creditícios existentes no título de crédito (fls. 82/86), circunstância esta que confirma o fato de a duplicata ter sido transferida com efeito de cessão de crédito.
Conforme esclarece De Plácido e Silva, O contrato de factoring – ou, em vernáculo, faturização – é aquele pelo qual um industrial ou comerciante (faturizado) cede a instituição bancária (faturizador), total ou parcialmente, créditos oriundos de vendas efetuadas a terceiros, assumindo o cessionário o risco de não recebê-los, mediante o pagamento de determinada comissão a cargo do cedente. (…) O contrato de factoring, uma vez celebrado, produz efeitos tanto em relação ao faturizado e ao faturizador, como no tocante ao cliente ao comprador. Trata-se, a rigor, de autêntica cessão de crédito, a título oneroso, feita pelo faturizado ao faturizador, sub-rogando-se este nos direitos daquele, tornando-se, portanto, credor do comprador, que se obriga a pagar ao cessionário, desde que devidamente notificado da transferência do crédito. (in Vocabulário jurídico, 27a ed., Forense, Rio de Janeiro, 2008, pág. 594).
No dizer de Fran Martins, o contrato de faturização ou factoring é aquele em que um comerciante cede a outro os créditos, na totalidade ou em parte, de suas vendas a terceiros, recebendo o primeiro do segundo o montante desses créditos, mediante o pagamento de uma remuneração {in Contratos e obrigações comerciais, 13a ed., Forense, Rio de Janeiro, n°417, pág. 469).
Conforme conceitua o art. 15, § 1o, III, d, da Lei n° 9.249/95, a atividade de factoring ê a (…) prestação cumulativa e contínua de serviços de assessoria creditícia, mercadológica, gestão de crédito, seleção de riscos, administração de contas a pagar e a receber, compra de direitos creditórios resultantes de vendas mercantis a prazo ou de prestação de serviços (factoring).
Tratando-se a operação de factoring de autêntica cessão de crédito, a título oneroso, feita pelo faturizado ao faturizador, sub-rogando-se este nos direitos daquele, tornando-se, portanto, credor do comprador, adequada a aplicação da regras relativas à cessão de crédito, previstas no Código Civil, ao fomento mercantil.
Assim, dispõe o artigo 290, primeira parte, do Código Civil que A cessão do crédito não tem eficácia em relação ao devedor, senão quando a este notificada. Dessa forma, embora o devedor seja terceiro em relação à cessão, que se aperfeiçoa sem o seu consentimento, o certo é que a eficácia do negócio em relação a ele depende de sua notificação.
Nesse sentido: DECLARATÓRIA. NULIDADE DE TÍTULO DE CRÉDITO. CHEQUES. ‘FACTORING’. CONTRATO ATÍPICO. APLICAÇÃO DAS REGRAS RELATIVAS À CESSÃO DE CRÉDITO. INEXISTÊNCIA NOTIFICAÇÃO DO CEDIDO. PAGAMENTO REALIZADO AO CREDOR PRIMITIVO. VALIDADE. Tendo sido os cheques transferidos para empresa de faturização, deve o devedor ser notificado dessa transferência, para que a operação tenha eficácia perante ele (art. 290, primeira parte, CC). Inexistindo tal notificação ou ciência da transmissão dos cheques ao factor, deve ser considerado válido o pagamento efetuado pelo devedor diretamente ao antigo credor (art. 292, primeira parte, CC). Sentença mantida. Recurso não provido.(TJSP – Apelação n°. 990.10.138724-7, 37a Câmara de Direito Privado, Rei. Roberto Mac Cracken, julg. 06.08.10). Ainda: AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE DE TÍTULO – CAUTELAR DE SUTAÇÃO DE PROTESTO – FATURIZAÇÃO – CESSÃO DE CRÉDITO – APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO CIVIL – NOTIFICAÇÃO DO DEVEDOR – INEXISTÊNCIA – HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. Aplica-se, às operação de ‘factoring’, as normas previstas no Código Civil relativas à cessão de crédito, ante a sua natureza contratual. Para que a cessão de crédito, efetivada entre cedente-faturizada e cessináriofaturizador, tenha eficácia em relação ao devedor, imprescindível se faz a notificação deste quanto a tal operação, a teor do artigo 290 do CC/2002. Nas causas em que não houver condenação, os honorários advocatícios devem ser fixados de conformidade com o § 4o do artigo 20 do CPC. Recurso não provido. (TJMG – Apelação n°. 1.0024.04.513848-4/001(1), Rei. Roberto Borges de Oliveira, julg. 20.03.07).
De rigor, para a hipótese destes autos, que a ré apelante tivesse notificado a autora, antes do pagamento, para que esta efetuasse a quitação do título perante aquela e para que a cessão do crédito em comento tivesse eficácia relativamente à requente. No entanto, ao que se verifica dos elementos constantes dos autos, a corre apelante não procedeu à notificação da cessão de crédito à requerente, não havendo que se falar, ainda, que o recebimento do aviso de protesto pela autora pode ser tido como notificação de transferência do título, até mesmo porque a duplicata foi indicada a protesto em 08.05.2000 (fl. 24) e o depósito bancário data de 24.04.2000.
Não ocorrendo tal notificação e, portanto, não tendo ciência da transferência do crédito à empresa de factoring, tem-se como válido o pagamento efetuado pela autora diretamente ao credor primitivo (artigo 292, primeira parte, do Código Civil), que restou incontroverso pelo depósito bancário em conta corrente da corre Articland Comércio e Refrigeração Ltda., demonstrado às fls. 29/30, realizado em 24 de abril de 2000.
Ante a incontroversa quitação do título em questão pela credora primitiva, tem-se por indevido o protesto por falta de pagamento efetivado a mando da corre apelante (certidão de fl. 23). Assim, o fato de a corre apelante ter demandado o protesto da duplicata em questão por falta de pagamento, em data posterior à quitação do débito, sem ter procedido à prévia notificação da autora, empresa sacada, quanto à realização da cessão de crédito do título pela sacadora, faz com que ela responda pelos prejuízos que sua conduta causou à requerente.
Desta forma, evidente que, agindo da maneira que agiu, a corre Cobravel Factoring Fomento Mercantil S/A causou prejuízo moral à autora, que teve seu nome indevidamente protestado e inscrito perante os órgãos de proteção ao crédito (fl. 22), não havendo notícias nos autos, ademais, de inscrições anteriores à ora em comento.
Patente, pois, o dever desta ré de reparar os prejuízos sofridos pela autora em razão de sua conduta ilícita.
Respeitado o entendimento do nobre magistrado, a Súmula 227, do Colendo STJ, já consagrou que é possível a pessoa jurídica sofrer dano moral, em decorrência de ações que acarretem abalo de seu conceito no mercado em que atua, uma vez que o direito à honra e à imagem é garantido pelo Constituição Federal em seu artigo 5o, inciso X.
Neste sentido, Luiz Felipe Haddad enuncia que: Quem, por falsas notícias, por atitudes alarmistas ou tendenciosas, prejudica a boa imagem de uma empresa perante o público consumidor de determinados produtos, causa, sem dúvida, dano à mesma, que não é mensurado apenas no aspecto econômico, mas também em termos morais; não porque uma empresa possa ‘sofrer’ ou ‘sentir dor’, mas porque seu nome, sua marca, suas características em geral, penosamente construídos pelo labor, se vêem conspurcados de uma hora para outra, com dor e sofrimento para as pessoas naturais associadas na mesma pessoa jurídica (criada por ficção do direito) – in, Dano Moral – Yussef Said Cahali, 3a ed. Pág. 382.
No caso de protesto indevido, a comprovação da ocorrência do fato é suficiente para a configuração do dano moral. Nessa linha vale lembrar o ensinamento de RUI STOCO: O dano simplesmente moral, sem repercussão no patrimônio, não há como ser provado. Ele existe tão-somente pela ofensa, e dela é presumido, sendo o bastante para justificar a indenização (TJPR – 4a C. – Ap. – Rei. – Wilson Reback – j . 12.12.90 – RT 681/163). (Responsabilidade Civil e sua interpretação jurisprudencial, 4a edição, Ed. RT, SP, 1999, pág. 722).
Esse lesionamento moral merece compensação financeira para minorar o sofrimento da autora; o valor fixado deve levar em consideração os dissabores, frustrações, desencantos e constrangimentos experimentados em razão da inscrição indevida de seu nome perante os órgãos de proteção ao crédito.
A boa doutrina pondera que inexistem caminhos exatos para se chegar à quantificação do dano moral, não se podendo desprezar a atuação do juiz a fim de que se alcance a equilibrada fixação dentro da necessária ponderação e critério (RT 631/34-36). A função da paga em dinheiro não é a de repor matematicamente um desfalque patrimonial, mas apenas a de representar para a vítima uma satisfação igualmente moral, ou seja, psicológica, capaz de neutralizar ou anestesiar em alguma parte o sofrimento impingido ao prejudicado. A eficácia da contrapartida pecuniária está na aptidão para proporcionar tal satisfação em justa medida, de modo que tampouco signifique enriquecimento sem causa da vítima. A estimação deve ser deixada ao prudente arbítrio do juiz, levando em conta a gravidade objetiva do dano, a personalidade da vítima, a gravidade da falta, a personalidade e condições do autor do ilícito (RT 650/66). Conforme o Recurso Especial n° 8.768-SP, a III Conferência Nacional de Desembargadores do Brasil, efetivada em dezembro de 1.965, na Guanabara, na sua 2a conclusão, firmou o entendimento que o arbitramento do dano morai fosse apreciado ao inteiro arbítrio do Juiz que, não obstante, em cada caso, deveria atender à repercussão econômica dele, à prova da dor e ao grau de dolo ou culpa do ofensor e que Orozimbo Nonato e Hahnemann Guimarães Philadelpho Azevedo, no Anteprojeto do Código das obrigações de 1.941, recomendavam que a reparação pelo dano moral deveria ser moderadamente arbitrada. Essa recomendação tinha por finalidade evitar a perspectiva de lucro fácil e generoso ou, mesmo, o locupletamento indevido.
De acordo com o entendimento desta Colenda Câmara, (Apelação n° 991.01.005160-1 – Rei. Des. Jovino Sylos), ante a análise, repercussão e extensão dos fatos, a indenização deve ser fixada em R$ 5.000,00, já considerada a correção monetária e os juros de mora, valor este que bem compõe a lide, satisfazendo as exigências subjetivas e objetivas do pedido, já que não é essa uma forma de enriquecimento. A partir da prolação do acórdão, deverá incidir, sobre referido valor, correção monetária, pelos índices da Tabela Prática do Tribunal de Justiça, e juros de mora, nos termos do art. 406 do Código Civil.
Por fim, em razão da sucumbência, devem solidariamente responder as corres pelo pagamento das custas e despesas processuais, bem como, pelo pagamento de honorários advocatícios ao patrono da autora, fixados em 15% sobre o valor da condenação.
Pelo exposto, dá-se parcial provimento ao recurso da autora e nega-se provimento ao recurso da corre.
CÂNDIDO ALEM
Relator
APEL.N0: 9140254-55.2009 – SÂO PAULO – VOTO 24240 – MR